Mansidão e Misericórdia

"Bem-aventurados os mansos, porque eles herdarão a terra; Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque eles serão fartos; Bem-aventurados os misericordiosos, porque eles alcançarão misericórdia." (Mateus 5: 5-7).

"E, levantando ele os olhos para os seus discípulos, dizia: Bem-aventurados vós, os pobres, porque vosso é o reino de Deus. Bem-aventurados vós, que agora tendes fome, porque sereis fartos." (Lucas 6: 20-21a).

Se apenas prestássemos atenção ao que nos ensina a natureza, gozaríamos do estado mais feliz que os homens poderiam desejar. Pois Deus criou todos nós à Sua própria imagem, de modo que precisamos apenas olhar para o próximo para ver a nós mesmos. Nós somos uma só carne. E, embora em nossas aparências e atitudes sejamos muito diferentes, é impossível apagar a unidade que Deus nos conferiu. Se ao menos mantivéssemos isso firmemente gravado em nossas mentes, todos estaríamos vivendo em paz uns com os outros, em uma espécie de paraíso terrestre. O que ocorre, no entanto, é o oposto. Todos ao nosso redor seguem seus próprios interesses e buscam alguma vantagem; todo mundo deseja exercer domínio sobre os demais. Daí nosso orgulho, nossa firmeza, nosso veneno, que é produzido tão logo somos provocados.

Dureza e até mesmo crueldade abundam em nós. Somos vingativos e não promovedores da paz: de fato, cada vez que alguém se ofende, é como se um raio caísse do céu. Portanto, se no decorrer da vida enfrentamos muitas dificuldades, não precisamos ir muito longe para encontrar a explicação para isso: a dor que aflige os homens vem do seu próximo. É claro que todas as pessoas têm desculpas em relação a isso. Elas dizem que não querem outra coisa senão ser gentis e bem educadas, mostrando paciência para com aqueles entre os quais vivem. Mas, acrescentam, é impossível negar nossa natureza humana: portanto, precisamos saber como caçar com os lobos, porque ser ovelha nesse mundo é arriscar-se a virar jantar de outra pessoa. Essa é a desculpa geralmente oferecida pelos homens para mascarar suas atitudes. Na realidade, estão tão cheios de amargura, arrogância e orgulho que mal conseguem tolerar uns aos outros. É mais apropriado, então, nos lembrarmos da lição que o Filho de Deus tem para nós. Pois embora pensemos que somos tratados injustamente quando não podemos revidar uma ofensa contra aqueles que nos maltratam, o Senhor nos diz que são os pacificadores e os mansos que possuirão a terra.

Agora, o senso comum nos declara que tal coisa não é digna de credibilidade. A experiência também sugere que a vitória e o sucesso pertencem aos mais ousados ​​e agressivos, enquanto os despretensiosos não ousam nem abrir a boca para protestar ou reclamar, mesmo quando são roubados por outros homens e extorquidos em tudo quanto possuem. O senso comum dita que as pessoas mansas sempre sofrerão insultos e abusos, incapazes de encontrar um recanto onde possam respirar tranquilamente ou se esconder de seus perseguidores – são cordeiros, por assim dizer, no meio de lobos.

Com tudo isso, nosso Senhor Jesus Cristo não fez nenhuma afirmação falsa quando prometeu que os mansos herdariam a terra. Esse ensino pode não fazer sentido para os sábios desse mundo; mas os crentes já tiveram provas suficientes dessa verdade para saber que essas não são palavras vazias. Por mais que os homens possam se enfurecer e lutar continuamente, atacar, roubar e cometer tantos outros atos de violência, por mais que, eu afirmo, os homens possam se esforçar para sair por cima, se considerarmos sinceramente o seu real estado de espírito, descobriremos que o que ocorre é o oposto.

Qualquer pessoa em necessidade é inimiga. Naturalmente, se eles conseguirem adquirir poder, ninguém ousará se opor abertamente a eles. Mesmo assim, interiormente, os homens se enfurecem e fumaça sai de suas narinas; eles sabem que não têm amigos, e, em sua ansiedade e agitação, suspeitam de todos. A desconfiança desmedida, como uma picada de espinho guia seus passos, ou como um aguilhão agudo, acaba cegando sua visão, enchendo-os de pânico e espalhando-os como almas perdidas que erroneamente imaginam que um inimigo as persegue. E mesmo supondo que não tivessem nada a temer em relação a outros homens, Deus certamente seria seu juiz. Assim como perturbam o céu e a terra com suas ações imprudentes, Deus os inquieta por dentro: a consciência deles, como diz Isaías, será como as ondas do mar agitadas pela tempestade. Eles estarão em guerra consigo mesmos, perdendo, assim, o juízo. Nunca terão repouso, como o profeta mesmo declara. É por isso que a lei diz explicitamente que a vida de tais homens está pendurada por um fio, que seus olhos apodrecerão nas órbitas, que seus membros tremerão e, quando a manhã chegar, eles clamarão em meio ao pranto: “Viverei o suficiente para ver o cair da noite?” E quando for tarde, perguntarão: “Conseguirei sobreviver a noite inteira? Supondo que seja atacado, o que eu poderia fazer?”

Somente aqueles homens cegos pela vaidade, por mentiras e preconceitos são incapazes de ver a verdade contida na profecia de Isaías. Todos sabemos o que ocorre àqueles que atacam, roubam e devoram seus semelhantes como lobos, e, por arrogância e orgulho, tentam tirar tudo o que podem deles. Eles nunca sequer conhecerão um momento de paz. Podem até possuir a terra, podem ser senhores poderosos, mas, onde quer que eles pisarem, serão como homens mortos. Apesar de todos os seus castelos, fortalezas e guardas bem armados, o fato é que eles estão encarcerados. No campo aberto e com uma numerosa escolta, são inseguros, em constante estado de medo e tremor. Em resumo, aonde quer que estes homens vão, sabem perfeitamente que são como Caim, não possuindo paz de espírito, mas assediados de todos os lados por ansiedade. Ao possuir muito, no fim das contas não possuem nada, pois são incapazes de apreciar o que pensam ter. É assim com todos aqueles que são considerados grandes neste mundo. Internamente, estão em estado de perturbação, embora, na opinião dos homens, não tenham motivos para estar assim. Por que, então, se encontram nessa situação? É porque Deus traz aflição àqueles que afligem as outras pessoas.

Eles ficam loucos, vendo inimigos ao seu redor e julgando todos os homens, grandes e pequenos, como ameaça. Pois, embora ninguém ouse dizer uma palavra ou levantar um dedo contra eles, estão sempre muito ressentidos. O mundo inteiro poderia silenciar e honras se amontoarem sobre eles: ainda assim, Deus estenderá a mão para puni-los, tal como merecem. Por outro lado, os pobres que andam com sinceridade e perseveram pacientemente estão seguros; por mais que sofram crueldades e provações, certamente eles herdarão a terra, como diz o Salmo 37. Embora não possuam um pedaço de terra, nem pasto, vinha, campo ou casa, eles estão convencidos de que foi Deus quem os colocou neste mundo; e, embora sejam como aves empoleiradas em um galho, ainda assim podem dizer com segurança: ‘Deus guiará meus passos onde quer que eu esteja. A Terra também me acolherá e me dará o sustento, pois foi criada para esse fim. Deus me permitirá encontrar um lar aqui, e Ele cuidará de mim como Seu convidado, desde que lhe agrade.’

Quando uma pessoa tem essa garantia, sabendo que Deus a mantém e continuará a sustentá-la, ela é infinitamente mais rica do que aqueles que procuram se agarrar a muitos bens, buscando abrir caminho pela vida, os quais na pressa de devorar tudo, não se satisfazem com reinos, principados, países ou cidades. Quando sua obra é finalmente concluída, não encontram nenhum abrigo, nem esconderijo nem refúgio, pois Deus está contra eles e todos os demais homens são seus inimigos.

Embora os crentes sejam estranhos e errantes neste mundo, não é o lar que possuem no mundo muito melhor do que qualquer poder terrestre, o qual constitui a fonte de tanto tormento para aqueles que o cobiçam? A experiência também ensina aos crentes que Deus os guarda. Imagine o que aconteceria se fosse o contrário. Pense por um momento na maldade e fúria dos incrédulos: eles são a imagem perfeita de Satanás, seu pai! O mundo estaria cheio de assassinos, e todas as pessoas boas e amantes da paz logo seriam varridas da terra, se Deus não usasse Seu poder invisível para preservá-las. Devo dizer que é o que poderíamos esperar se voluntariamente fechássemos os olhos para a graça de Deus tão claramente revelada nesta passagem.

Além do mais, sabemos que Deus nos deu o Senhor Jesus Cristo para ser o nosso Pastor. E como tal, Sua obra mais vital é preservar a nossa alma até alcançarmos a salvação eterna que Ele conquistou para nós. Mesmo nesta vida transitória, Ele se importa com as nossas necessidades físicas. Portanto, sejamos suas ovelhas, pois Ele não é um pastor de lobos. Se escolhermos viver como bestas selvagens, abandonar todas as restrições, e, como se não bastasse, pegarmos em armas para nos vingar e criarmos o maior escarcéu toda vez que alguém nos ofender ou chatear, não podemos esperar que Jesus seja nosso pastor. O que Ele exige de nós é que escutemos Sua voz. Ovelhas e cordeiros ouvem a voz de seu mestre: sigamos este exemplo! E então, se formos honestos e sinceros, certamente descobriremos como é poderoso o protetor que nos guarda, o Filho de Deus, que empregará o poder de Seu Pai para nos manter e nos sustentar.

Os mansos herdarão a terra. Essa é uma ideia que a mente humana não consegue aceitar. Em vez disso, o que se diz por aí é que todos aqueles que são gentis, sinceros e sofredores são na verdade tolos; seria melhor que eles se vingassem do que permitir que alguém abusasse de sua boa natureza. Ainda assim, a verdade é declarada por Jesus em outra parte: é muito melhor e mais preferível manter a sinceridade, praticando a paciência quando somos criticados, não pagando o mal com o mal, mas vencendo o mal com o bem. Se fizermos isso, teremos encontrado a única maneira verdadeira pela qual podemos possuir a terra. O que, afinal de contas, buscam os brutais e impetuosos, quando os homens se apavoram ao vê-los e tremem de medo por sua chegada? Não é o objetivo deles possuir a terra e governá-la como tiranos? Sim, é isso que eles cobiçam para si.

Mas, como vimos, eles mesmos são cativos em todos os lugares da terra. Em campos abertos, cidades, castelos e fortalezas — todos são inimigos; eles estão em guerra consigo mesmos; Deus os persegue onde quer que estejam.

Quanto a nós, devemos retornar constantemente ao que o Filho de Deus nos declara, pois o que Ele diz é eternamente verdadeiro e confiável. Sejamos claros sobre isso: desde que, como Ele mesmo diz, exercitemos o autocontrole e sejamos pacientes, desde que tenhamos a gentileza que Ele exige de nós e para a qual nos chama, nós herdaremos toda a terra. Com os corações agradecidos, livres e abertos, desfrutaremos das coisas boas que Deus em sua bondade nos proporciona aqui. Também temos a certeza de que sempre estaremos em paz, quaisquer que sejam as dificuldades em que estamos.

Dito isto, devemos reconhecer que esta promessa ainda não está totalmente cumprida. Basta que hoje experimentemos sua verdade em parte. As Escrituras dizem corretamente que o último dia será o dia da nossa redenção, o dia em que os filhos de Deus serão ressuscitados e transformados. Portanto, devemos esperar pacientemente até que possamos receber a herança que Cristo prometeu e assumir a terra como Seu legado para nós. Devemos nos contentar em seguir nosso curso até o fim e completar nossa peregrinação nesse mundo. Independentemente de onde estamos, independentemente das provações que nos afligem, da opressão e das perdas que sofremos, devemos nos contentar em confiar na promessa de Deus e no testemunho de nossa consciência de que tudo será nosso, porque somos seus filhos e herdeiros.

Além disso, precisamos parar de invejar os orgulhosos, violentos e dominadores, os quais, como bestas brutas, pensam que têm tudo quando estão por cima. Isso é essencialmente o que este versículo nos ensina. Temos de odiar o provérbio diabólico que nos exorta a “correr com a lebre e caçar com os cães”. Em vez disso, coloquemos a proteção do Senhor acima do nosso impulso de retaliar ou de defender nossa causa. Seu poder de nos sustentar é ilimitado e Ele é infinitamente mais poderoso do que qualquer inimigo. É isso que temos de entender aqui.

Em seguida, as Escrituras dizem: Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque eles serão fartos. São Lucas simplesmente diz: Bem-aventurados sois vós que agora têm fome, pois serão saciados. São Mateus acrescenta a palavra “justiça” por uma questão de precisão. Mas mesmo assim, ele foi mal interpretado. Alguns buscaram um significado mais profundo e misterioso do que aquele que seria recomendável. Devemos ser zelosos, dizem eles, por retidão — isto é, devemos ansiar por uma ordem mais justa e íntegra, para que, quando Deus olhar para nós e ver quão sinceros somos, Ele transforme o mundo e o torne melhor, alegrando assim nossos corações.

Agora, isso é uma coisa perfeitamente boa para ensinar no contexto apropriado. Os escritores do evangelho, no entanto, explicam plena e fielmente o significado das palavras de Cristo aqui. Através da descrição de São Lucas, nenhum significado sutil ou profundo pode ser retirado do texto. Ele não diz que devemos ter fome de justiça ou que, diante de tantos males, devemos clamar a Deus, implorando para Ele pôr o mundo nos eixos. Assim, quando as Escrituras dizem: Bem-aventurados os que têm fome, significa o mesmo que vimos antes: bem-aventurados os que choram, que são pobres de espírito e, portanto, angustiados, que se voltam para Deus em busca de refúgio e alívio.

Por que, então, São Mateus acrescenta a palavra “justiça”? Para expressar uma ideia perfeitamente apropriada. O que ele realmente quer dizer é que os filhos de Deus não apenas terão fome e sede — isto é, sofrerão opressão, serão desprovidos de ajuda e conforto — mas eles terão a justiça do seu lado, pois não terão dado a ninguém motivos para prejudicá-los. Não é que eles busquem privilégios ou favores especiais como recompensa por não terem ferido ninguém. Na verdade, eles não tentam vencer sua causa por meio de artifícios. Tudo o que eles pedem é que sejam tratados de forma imparcial e não sejam assediados sem justa causa. Eles têm todo o direito de se sentirem assim, mas seu desejo não será imediatamente concedido. Quão miseráveis ​​e infelizes seriam, se não fosse a promessa dada por Deus aqui, de que eles serão saciados?

É assim que as palavras de nosso Senhor são melhor compreendidas. Antes de tudo, Ele nos chama atenção para o fato de que não desfrutaremos de um estado de descanso ou repouso, mas que, pelo contrário, teremos fome e sede; e nosso desejo de serem atendidas as necessidades dessa vida será frustrado. Nem sempre teremos comida e bebida quando precisarmos; ou, se somos bem alimentados, podemos ficar sem roupas ou abrigo. Em segundo lugar, Ele diz que seremos dolorosamente afligidos, e que, seja qual for a direção para a qual nos voltarmos, não haverá ninguém para nos socorrer. Será como se as pessoas pudessem cuspir na nossa cara e permanecer em perfeita impunidade!

Essa é uma condição amarga e difícil de suportar, especialmente quando pensamos em nossas próprias enfermidades. Pois somos tão frágeis que a coisa mais simples nos enche de desespero. Portanto, vamos aprender a descansar na esperança infalível de que um dia, finalmente, seremos saciados e Deus suprirá todas as nossas necessidades. Se hoje somos como aqueles que estão à porta da morte, desprovidos de força interior e de ajuda externa, se hoje estamos em uma situação difícil, deixemos que essa esperança seja o nosso apoio e sustento, enquanto olhamos para Deus, cuja obra é saciar o faminto.

Por acaso nos surpreende se, andando em justiça e não buscando vantagem especial, ainda assim, sentimos fome? De fato, podemos realmente ser inocentes de agressão, não ávidos por lucrar às custas de outra pessoa, pedindo apenas justiça e equidade para nós mesmos: contudo, ainda assim devemos suportar a fome e a sede. Deus nos deixará definhar por um tempo para testar nossa paciência ou fé. Pois se hoje estivéssemos perfeitamente à vontade, sem nada em falta, cercados por pessoas ansiosas para nos agradar e sem ninguém para nos incomodar ou nos aborrecer, qual seria o sentido de Sua insistência para praticarmos o que é ensinado aqui?

A fome e a sede são, portanto, uma necessidade para nós. E já que, como vimos, devemos ser mansos, como homens que vivem entre feras com dentes afiados e cujas garras estão prontas para nos rasgar, despedaçar e destruir, sejamos levados a prosseguir com paciência e sinceridade. Devemos ter fome e sede de oração! E embora o Senhor permita que soframos, mesmo quando estamos com a razão, não devemos dar lugar à tristeza, ao desespero ou ao medo irracional. Devemos manter firme a esperança de que, no final, Ele suprirá todas as nossas necessidades. Isso é outra coisa que nosso texto tem para nos ensinar.

Nosso Senhor Jesus Cristo continua acrescentando: Bem-aventurados os misericordiosos, pois alcançarão misericórdia. Novamente, trata-se aqui de um ditado bastante estranho ao nosso modo de pensar natural. Onde mais imaginamos encontrar a felicidade, senão na ausência de preocupações e angústias? “Nos deixe em paz”, choramos. “Que outros sofram em silêncio. Nós não queremos saber. Não queremos ser incomodados.” Paz de espírito, indiferença — basta que tenhamos nossos desejos físicos satisfeitos e contemplaremos todos os mais vis homens da terra sem sentir qualquer tristeza, inquietação ou angústia.

É por isso que muitos imaginam que são abençoados quando estão cercados de facilidades, quando vivem uma vida de paz, sem ter de pensar no que está acontecendo ao seu redor. O desejo deles é apenas tapar os ouvidos, para não ter de ouvir notícias que possam afetá-los. Pois existem dois tipos de emoções que nos perturbam: a infelicidade que surge do infortúnio pessoal e a compaixão, quando vemos alguém pobre sofrendo além da medida — alguém que talvez esteja sendo oprimido injustamente ou que perdeu todos os seus bens materiais, órfãos infelizes sem seus pais, esposas sem maridos, ou eventos inesperados que, repito, nos trazem grande incômodo. Aqueles que buscam a felicidade (como entendem essa palavra), tentam escapar do infortúnio pessoal, que se configura na forma de prejuízos que eventualmente sofram ou na perda de bens. Eles amam a aprovação dos homens; se divertem em festas, com risadas, em ambientes vantajosos; querem elogios e bajulações. Esse é um ponto a considerar.

Mas tem mais. Supondo que lhes digam: Está vendo aquele pobre coitado? Ele está sofrendo terrivelmente. Não tem nada — nem dinheiro — e sua saúde se foi. É lamentável de se ver. Notícias como essa são uma fonte de aborrecimento para as pessoas do mundo. Elas, como sabemos, irão deliberadamente endurecer seus corações, e não somente deixarão de sentir piedade das misérias que os outros suportam, mas ficarão perfeitamente satisfeitas se todos acabassem passando fome. Elas podem até possuir grandes estoques de trigo, mas se toda a população do mundo perecer, não darão importância a isso, desde que suas próprias carteiras estejam cheias. Para elas, não importa se os pobres morrem de fome, desde que os negócios estejam indo bem.

Existem muitos outros exemplos desse tipo. Todos eles mostram como é fácil para os homens que desprezam a Deus deixar de lado toda piedade e compaixão, a fim de evitar preocupações e problemas. Agora as Escrituras dizem algo muito diferente aqui. Devemos suportar pacientemente nossas próprias aflições — um ponto que já observamos — mas também devemos suportar as aflições de nosso próximo. Devemos assumir a identidade deles, por assim dizer, para que possamos ser profundamente tocados pelo seu sofrimento e movidos pelo amor de maneira a lamentar por eles. Devemos chorar com os que choram, como São Paulo nos exorta a fazer.

Dissemos anteriormente que, embora sejamos expostos a infortúnios, problemas, opressões e abusos, podemos ser verdadeiramente felizes porque Deus abençoa nossos sofrimentos quando olhamos para Ele. Neste versículo, o Senhor Jesus Cristo leva os crentes a dar um passo adiante, ensinando que, além de sermos mansos e pacientes quando somos afligidos, devemos também estar unidos com os outros em suas angústias, e tão tocados pela compaixão por seus sofrimentos que buscaremos maneiras de ajudá-los, como se a dor deles fosse nossa. Repito, uma vez que Deus nos uniu para fazer de nós um só corpo, todos os membros são necessariamente um, e cada indivíduo deve ter sua parcela de sofrimento, a fim de aliviar aqueles que não podem mais suportar a sua própria dor. Essa é a verdade que devemos entender aqui.

O que é piedade? Resumidamente, nada mais é do que a dor que sentimos pela tristeza de alguém. Um homem pode ser saudável e contente, com grande fartura e a salvo de qualquer ameaça e perigo. Mas quando vê seu vizinho angustiado, é obrigado a sentir sua dor, a compartilhar sua tristeza, a suportar parte do fardo, e, dessa maneira, aliviar a sua carga. Isso é o que é misericórdia. A mesma ideia é transmitida em nossa língua pela palavra “esmola”. Infelizmente, seu significado foi mal interpretado. O que as pessoas querem dizer com “dar esmolas aos necessitados” não é algo inspirado nos bons sentimentos de humanidade. É claro que é possível ofertar voluntariamente algo a uma pessoa pobre, mas muitos fazem isso como se fosse um tributo, uma cobrança ou um pagamento dado de má vontade e com relutância. Não há nenhuma sugestão de que, quando um homem rico oferece sua soma, ele diz a si mesmo: “Aqui está um membro do corpo de Cristo, nós estamos ligados.” É muito mais importante, portanto, entender que ajudar o próximo só faz algum sentido quando somos movidos por um amor que vem do coração, o qual nos inclina a querer tomar parte no fardo de infortúnios que vemos ao nosso redor no mundo. E porque Deus nos uniu a todos, ninguém pode simplesmente se virar e viver apenas para si mesmo. Não há lugar aqui para a indiferença, a qual promete tranquilidade e prazeres de uma vida confortável: devemos antes ampliar nossos afetos, como exige a lei do amor.

Portanto, quando vemos alguém que está doente, pobre ou desprovido de tudo, e outros que estão com problemas e angústias do corpo ou da mente, devemos dizer: “Esta pessoa pertence ao mesmo corpo que eu.” E então provaremos com nossas ações que de fato temos misericórdia em nossos corações. Podemos proclamar nossa piedade por aqueles que sofrem; mas, a menos que realmente os ajudemos, nossas palavras serão sem valor. Muitas pessoas dirão: “Ó! Quão terrível seria passar pelo que aquele pobre homem tem passado!” No entanto, simplesmente deixam de lado a questão, sem realizar nenhuma tentativa para ajudá-lo. Expressões de piedade não levam ninguém a agir. Em resumo, este mundo parece estar cheio de misericórdia, se você acredita em palavras vazias; mas na realidade, é tudo fingimento. São Tiago condena vigorosamente essa atitude no capítulo 2 de sua epístola. É o ponto máximo da insolência dizer: “Ah, que tristeza!” Quando ninguém está disposto a levantar um dedo ou mesmo pronunciar uma palavra em defesa dos aflitos. Devemos, portanto, aprender primeiro a ser gentis e compassivos com aqueles que sofrem; e então, de maneira diligente, fazer uso das oportunidades que Deus oferece.

Este versículo tem uma promessa embutida nele, porque somos notoriamente lentos para agir. Também é verdade que o que o Filho de Deus declara aqui contraria todas as nossas inclinações naturais. Não concordamos facilmente com isso. Dessa maneira, a promessa serve como um ponto de partida. Pois, se o texto dissesse simplesmente: Bem-aventurados os misericordiosos, nós o rejeitaríamos imediatamente. Quando, no entanto, Cristo nos diz que todos nós precisamos de misericórdia, tanto de Seu Pai celestial quanto de nossos semelhantes, e que só podemos obtê-la se formos misericordiosos — isso pelo menos deve nos levar a olhar mais atentamente para nós mesmos. Quando começamos a saborear a verdade do que nos é dito aqui, só podemos concluir que ser misericordioso é na verdade parte da bênção de que desfrutam os filhos de Deus. É um fato inegável que todos nós precisamos de misericórdia.

Tomemos, por exemplo, a pessoa que possui tudo o que poderia desejar neste mundo: muitas decepções aparecerão em seu caminho. Até príncipes, reis e poderosos senhores enfrentam, uma vez ou outra, terríveis provações, sofrendo algumas vezes no corpo, outras vezes na mente. Embora eles possam procurar construir ninhos seguros para si mesmos acima das nuvens, Deus lhes mostra que, afinal de contas, não passam de mortais. Eles são obrigados a aceitar que são meros homens, criaturas frágeis. Se até os poderosos, que já gozam de um tipo de paraíso na terra, precisam de misericórdia, quanto mais nós?

Se passássemos cuidadosamente a analisar essas coisas, seríamos movidos a ter misericórdia sempre que víssemos nosso vizinho sofrendo em virtude de anseios ou aflições. Pode-se propor, no entanto, em objeção a isso, que o próprio mundo mostra pouca compaixão àqueles que demonstraram compaixão por outras pessoas. Considere primeiro este ponto. Deus, sabemos, tem o coração dos homens em suas mãos. Ele os inclina como quiser. Mesmo que o mal e a arrogância, a ofensa e o rancor sejam abundantes, o Senhor impõe aos homens o fardo da humanidade. Portanto, embora o mundo possa ter pouca consideração — de fato, ele tem desprezo — por obras de misericórdia realizadas em prol dos necessitados, Deus, ainda assim, põe de lado tudo isso, e, quando estamos angustiados, não nos nega a nossa recompensa — a misericórdia aos misericordiosos.

Isso, como veremos mais adiante, é o que nosso próprio Senhor Jesus Cristo ensina, quando diz que cada um de nós receberá de acordo com a medida que temos ofertado. São Tiago também declara, com razão, que a pessoa que não demonstrar misericórdia será julgada sem misericórdia.

Considere agora este segundo ponto. Supondo que Deus permitisse que tal ingratidão prevalecesse entre os homens, que todos os nossos esforços para ajudar os pobres parecessem em vão. O que ocorreria? Um dia, iremos comparecer perante o grande juiz. Sua misericórdia é a nossa única esperança. Supondo que o mundo inteiro esteja cheio de crueldade e que nossas boas obras se mostrem uma grande perda de tempo, ainda assim não teríamos menos necessidade da misericórdia de Deus. Não há nada mais aterrorizante na carta de São Tiago, mais terrível do que as palavras, “juízo sem misericórdia” (Tiago 2:13). Se tivéssemos que comparecer perante o tribunal de Deus para receber apenas justiça, o que seria de nós? Teria sido melhor se tivéssemos nascido mortos, ou entrado no mundo como pulgas, piolhos ou sapos — as formas de vida mais insignificantes!

Uma vez que nosso bem-estar e salvação dependem inteiramente da misericórdia de Deus, não devemos nos regozijar em sua promessa de piedade e compaixão quando nós, que demonstramos piedade ao próximo, colocarmos diante Dele nosso fardo de dor? Deus não será movido a nos receber e a ser misericordioso conosco, embora por causa de nossos terríveis pecados Ele tenha nos expulsado de Sua presença? Como temos essa promessa, teríamos que ser loucos, desvairados, para ignorar as reivindicações da compaixão. É disso que temos de nos lembrar aqui. Além disso, é fato que Deus nos permite provar, pelo menos em parte, o que o Filho nos assegura, pois Ele é a verdadeira testemunha que veio do seio do Pai para declarar Sua vontade (como lemos no capítulo 1, verso 18 do Evangelho de João).

Saiba então que, ao sermos misericordiosos, nós mesmos receberemos misericórdia, mesmo dos homens. E, por mais vis e ingratos que sejam, Deus os pressionará tanto que, quando precisarmos, eles nos ajudarão, embora a ideia de servir a Deus e de realizar caridade esteja longe de seus corações. Será com eles como foi com os egípcios que, embora inimigos do povo de Deus, foram obrigados a entregar-lhes as coisas mais preciosas que possuíam.

De qualquer forma, temos coisas mais sublimes em que pensar. Em última análise, devemos prestar contas de como vivemos: se formos misericordiosos, descobriremos que Deus será misericordioso conosco. Além disso, a misericórdia não consiste simplesmente em compaixão por aqueles que descrevi — os sedentos, famintos, doentes, feridos e oprimidos. Exige também que suportemos as enfermidades daqueles que, por si mesmos, merecem ser desprezados. Certamente, aqui, como em outros lugares, devemos observar o equilíbrio que encontramos nas Escrituras. Quando mostramos misericórdia àqueles que cometeram erros, nunca devemos fazê-lo com elogios, nem ignorando suas más ações, para que eles não se tornem ainda piores. Devemos mostrar piedade quando vemos que nossos vizinhos ainda estão sujeitos a muitas fraquezas e é necessário que sejamos pacientes com eles, não imitando-os, mas repreendendo suas falhas com bondade. Nunca devemos nos alegrar, como muitos, que riem e zombam da desgraça alheia. Em vez disso, devemos lamentar e dizer: “Que coisa triste, que este pobre homem tenha ofendido a Deus”. Deveria ser angustiante para nós ver a queda de qualquer pessoa, posto que foi tão amorosamente redimida pelo precioso sangue de Cristo; deveria nos angustiar ver a justiça de Deus ser transgredida entre os homens e Sua glória diminuída.

Acredite, essas coisas devem despertar nossa compaixão. É assim que encontraremos misericórdia aos olhos de Deus — tendo misericórdia daqueles que se perderam ou que acabaram tropeçando por causa de sua fraqueza; suportando-os e tentando ajudá-los a ficar de pé. São Paulo nos exorta a fazer as duas coisas: devemos exercer misericórdia sem preconceitos, tomando cuidado para não ceder aos pecadores; Em contrapartida, também não podemos ser tão severos e extremos, de tal maneira que deixemos de apoiá-los. O apóstolo nos diz para repreender aqueles que se desviaram, mas com mansidão de espírito. Reflita bem, ele diz, porque você também pode pecar. Se você entender sua própria fraqueza, então terá piedade daqueles que são pecadores como você. Dessa maneira, então, vemos como em todo tempo e lugar devemos exercitar a bondade: tendo compaixão daqueles que cometeram erros, ajudando os necessitados, amparando os que são injustamente oprimidos e defendendo seus interesses, ainda que, como consequência, homens maus se levantem com fúria contra nós.

Sobre essas coisas, observe o que está escrito no evangelho de São Lucas. “Bem-aventurados vós”, ele diz. Isso serve para nos mostrar que não é suficiente termos entendido esse ensinamento e declarado que é verdadeiro. Também devemos, cada um de nós, aplicá-lo de maneira pessoal. Não podemos permitir que as palavras simplesmente passem diante de nossos olhos ou ecoem em nossos ouvidos, registrando apenas “bem-aventurados... abençoados são aqueles...” Nosso Senhor Jesus Cristo deseja que guardemos todas essas coisas para nossa própria instrução. Em primeiro lugar, precisamos aprender a ser brandos e pacientes em todas as provações. Em seguida, a padecer fome e sede, e continuarmos mansos, mesmo quando somos injustamente perseguidos sem termos feito nada de errado. Por fim, precisamos aprender a ter misericórdia dos que sofrem e a ser sinceros quando nos dispusermos a ajudá-los, conforme a capacidade e oportunidade nos permitirem. Devemos fazer todas essas coisas, sem esquecer a palavra “agora”, a qual São Lucas acrescenta: “Bem-aventurados vós, que agora tendes fome”. Isso significa que, embora Deus permita que experimentemos nesta vida passageira a verdade contida nos ensinamentos de Seu Filho, o cumprimento desta alegria em nós permanecerá até o último dia. Vamos então aprender, agora — ou seja, em meio às perplexidades desta vida terrena — a ter compaixão daqueles que sofrem, e também a sofrer, nós mesmos, para que estando incomodados e aflitos, permaneçamos gentis e bondosos, pouco importando quanta crueldade e violência nos sejam dirigidas.

Por fim, certamente descobriremos que Aquele que pronunciou essas palavras possui todo o poder; todo domínio lhe foi dado, e Ele realizará tudo o que lemos nesta passagem, quando nos receber na união celestial pela qual agora nossa alma anseia.

Tenho um breve anúncio a fazer. Os vereadores concordaram que nosso irmão N, que recentemente serviu como ministro em Jussy, deveria ser chamado para esta cidade. Ele será apresentado no domingo seguinte. Como todos os membros da igreja têm o direito de serem consultados, qualquer pessoa que tenha alguma objeção a respeito dele deve declará-la aos Conselheiros entre hoje e domingo.

Agora vamos nos lançar diante da majestade de nosso bom Deus, reconhecendo nossos pecados e implorando a Ele que nos dê graça, de modo a admitir nossas falhas, para que possamos odiá-las. Sejamos renovados, para que tenhamos força para vencer todas as nossas paixões e destruir todos os desejos da carne. Que tenhamos como objetivo seguir a regra revelada a nós por nosso bom Mestre, e que nos entreguemos a Ele na expectativa de que Ele seja fiel e cumpra as promessas que nos fez. Que essa expectativa nos sustente até que nossa carreira nessa vida tenha acabado. Portanto, juntos, digamos: Deus Todo-Poderoso e Pai celestial.

João Calvino
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