A Espiritualidade da Lei

"Ora, as obras da carne são conhecidas e são: prostituição, impureza, lascívia, idolatria, feitiçarias, inimizades, porfias, ciúmes, iras, discórdias, dissensões, facções, invejas, bebedices, glutonarias e coisas semelhantes a estas, a respeito das quais eu vos declaro, como já, outrora, vos preveni, que não herdarão o reino de Deus os que tais coisas praticam. Mas o fruto do Espírito é: amor, alegria, paz, longanimidade, benignidade, bondade, fidelidade, mansidão, domínio próprio. Contra estas coisas não há lei. (Gálatas 5:19-23)

Vimos nesta manhã que os homens são condenados aos olhos de Deus porque tudo o que procede do homem está contaminado e imundo. Agora, se Deus é o autor de toda perfeição, segue-se que tudo o que é contrário à sua natureza ou à sua Palavra é totalmente corrupto. Portanto, há uma constante batalha da carne contra o espírito; pois, se os homens seguissem seus próprios caminhos, seriam inimigos mortais de Deus por toda a vida. Por esse motivo, podemos apenas concluir que os homens estão cheios de maldade e iniquidade. Quando ouvimos essa sentença pronunciada, devemos nos sentir completamente envergonhados; pois aqui está o decreto de nosso juiz celestial, e não é lícito contestá-lo, pois Deus fala com autoridade. Quando ele declara que somos maus e perversos por natureza, ele cumpre sua função; pois é nosso dever prestar contas a ele. No entanto, os homens estão tão cegos em sua hipocrisia e orgulho que não se importam se provocaram a ira de Deus contra si mesmos. Isso ocorre porque todos nós nos vangloriamos e alimentamos os nossos pecados. Portanto, a única maneira pela qual podemos conhecer verdadeiramente nossos pecados é pela força (de Deus). Mesmo assim, fazemos uso de técnicas ardilosas e subterfúgios. E o que é pior, buscamos descaradamente desculpas frívolas, como se elas fossem agradáveis a Deus! Portanto, não basta ouvir a sentença geral de condenação vinda de Deus pronunciada contra nós; precisamos que ele revele nossa própria vileza, que faça com que nos envergonhemos de nós mesmos. Precisamos que ele seja específico e aponte o dedo para os pecados que são aparentes e óbvios para as pessoas ao nosso redor.

Portanto, Paulo, tendo dito nesta manhã que todos os pensamentos e sentimentos dos homens lutam contra Deus, agora acrescenta a declaração que acabamos de ouvir. Ele nos diz que a aparência do fruto nos permite avaliar a condição da árvore, embora a parte mais importante, a raiz, esteja oculta. Assim como a árvore é conhecida por seus frutos, o pecado que reina em nós e em nossa natureza é visto pelas obras que produzimos. Assim, podemos ver por que Paulo diz aqui que ‘as obras da carne são manifestas’. É como se ele estivesse dizendo que as pessoas deliberadamente fecham os olhos para obscurecer seu próprio mal e se enganam pensando que estão cheias de nada além de virtude, embora estejam se afogando em tantos vícios terríveis. Por mais que possamos protestar, procurar desculpas diferentes, limpar a boca e disfarçar a maneira como as coisas realmente são, ainda temos que voltar ao fato de que nossas vidas declaram, em alto e bom som, o tipo de pessoas que somos. Assim, as obras da carne são realmente manifestas. Agora isso é suficiente para repreender aqueles que procuram se esconder atrás de uma camada de maquiagem, por assim dizer, como se fossem inocentes aos olhos de Deus. É verdade que Paulo não fornece aqui uma lista completa dos pecados que Deus condena na lei, mas ele recita exemplos pelos quais podemos facilmente julgar o resto. Além disso, teria sido um procedimento demorado se Paulo quisesse enumerá-los dessa maneira. Como veremos, no entanto, essa lista é suficiente para convencer todos aqueles que pensam que podem lucrar com sua hipocrisia.

Para entender melhor tudo isso, precisamos estar cientes do que é andar em obediência a Deus. No segundo capítulo de Tito, versículo onze, é dito que a graça de Deus foi revelada para que pudéssemos andar neste mundo em santidade, temperança e retidão, enquanto aguardamos a vida que Deus nos prometeu e o retorno do nosso grande Salvador, que nos reunirá a si mesmo em seu reino celestial. A isso os cristãos devem ficar atentos acima de tudo.

Eles devem estar exercitados nessas coisas; ou seja, no conhecimento de que este não é o lugar de nosso descanso eterno, nem nossa herança. Este mundo é como uma terra estrangeira pela qual devemos viajar, enquanto nossos olhos estão fixos no céu. Esta é a coisa mais importante. No entanto, isso não pode ser alcançado a menos que os crentes invoquem a Deus e recorram somente a ele. Quanto às nossas vidas, Paulo fala de três coisas específicas: existe a santidade, o que significa que servimos a Deus com um coração puro, com integridade e honestidade, renunciando a toda poluição deste mundo. Este é o primeiro ponto. Em segundo lugar, não devemos nos tornar mundanos ou profanos, mas levar uma vida honesta. O terceiro é que não prejudiquemos ninguém, que nunca pratiquemos engano ou crueldade, mas que procuremos, antes, servir nossos vizinhos. A vida de um cristão deveria ser assim.

Agora, aqui Paulo diz que, para aqueles que não reconhecem que estão em completa inimizade com Deus e cheios de malícia e rebelião, é necessário um teste simples. Se examinássemos suas vidas, descobriríamos que alguns são dados à fornicação, outros são beberrões, outros são entregues a todo tipo de maldade, alguns são assassinos, outras são bruxas, alguns provocam revoltas, outros são cheios de ambição, alguns ainda só buscam semear discórdia e criar problemas e seitas que pervertem a verdade de Deus por meio de sua corrupção. É isso que encontraremos se olharmos para a vida dos homens. Agora, o que eles ganharão reclamando de Deus e procurando esconder sua infâmia discutindo? Se eles não confessarem isso com a boca, suas vidas falarão. Suas vidas, com todas as obras que os vemos realizar, serão um testemunho do que dissemos; assim, não pode haver mais debate.  

Além disso, quando Paulo diz que as obras da carne são manifestas, ele não quer dizer que todos aqueles que Deus permite que sigam seu curso natural, e que não são guiados pelo Espírito Santo, são culpados de cada pecado mencionado aqui. É mais provável que uma pessoa seja corrupta na medida em que será entregue primeiro a um pecado, depois a dois ou três, conforme a ocasião surgir. Assim, existem muitos pagãos e incrédulos que não temem a Deus e nunca foram instruídos em sua Palavra, que ainda assim têm aparência de virtude e retidão. No entanto, isso não significa que eles estejam livres de corrupção, pois se a infecção estiver oculta e escondida dentro deles, então terão um tumor que acabará por apodrecer cada parte sua. Pois a natureza do homem não conhece fronteiras, nem limites; tudo é confusão desenfreada. É isso que devemos reter desta passagem; e, para que nenhum de nós seja enganado pela hipocrisia, precisamos olhar bem para nós mesmos e examinar nossas vidas diligentemente. Então seremos levados a baixar nossas cabeças e fechar a boca, sabendo que somos totalmente miseráveis e dignos de condenação. É verdade que nada do que Paulo lista aqui é aparente, e talvez não possamos ser acusados diante dos homens; mas ainda que pareçamos externamente como anjinhos, ainda somos maus e perversos, até que Deus nos transforme. É justo que não seja da vontade de Deus que fiquemos sem testemunho em nossas vidas para nos abater e fazer com que sejamos levados a nos condenar voluntariamente.

Agora veremos como aplicar essa doutrina. Se pensamos que somos dignos de alguma forma e não percebemos nossa própria pobreza, vamos examinar nossas vidas e fazer uma comparação entre nossas próprias ações e tudo o que Deus condenou e proibiu. É nesse momento então que teremos uma boa imagem de nossa maldade e sujeira; em vez de pensarmos que estamos cheios de pureza e perfeição, como fizemos antes, Deus revelará aos nossos olhos que estamos cheios de iniquidade. No entanto, depois de reconhecermos um pecado, depois dois, depois três, devemos concluir que isso nem sequer é a centésima parte dele. Pois sempre apresentamos uma visão embaçada quando se trata de nos conscientizarmos de nossa própria pobreza. Mesmo quando vemos claramente nossas obras, devemos ser capazes de prosseguir até a sua fonte.

Algumas pessoas são tão estúpidas que acham que serão aceitas desde que não sejam culpadas de fornicação, ou enquanto a embriaguez permanecer encoberta, ou desde que a fraude tenha sido realizada de maneira tão secreta e cuidadosa que ninguém a tenha percebido. A intenção de Paulo, no entanto, ao dizer que as obras da carne são manifestas, não é lisonjear os homens, dizendo-lhes que um pecado pode permanecer sem condenação até que seja detectado. Pois, como eu disse, um pecado leva a outro. Portanto, se fornicação, embriaguez, roubo, assassinato, traição, blasfêmia contra Deus, conflito e rebelião são coisas detestáveis em si mesmas, podemos concluir que o mesmo se aplica à impiedade, ambição, ao orgulho ou a um senso exagerado de autoestima que permanecem ocultos no coração. A cobiça, por meio da qual desejamos as coisas que pertencem aos outros, é outro pecado que devemos condenar. Em suma, as ações externas dão testemunho do fato de que estamos cheios de infecção aos olhos de Deus. Onde isso é visto? Em nossos desejos, em nossos conselhos, em nossos pensamentos e em todos os nossos empreendimentos; podemos ver que essas coisas nascem de uma fonte maligna.

Assim, somos atraídos pelo conhecimento de nossos pecados, o que nos deixa completamente envergonhados diante de Deus. Ele usa o mesmo método de instrução da lei. Lá, Deus não proíbe apenas a fornicação, mas ele proíbe o adultério. À primeira vista, parece que o Senhor não proíbe trapaça ou saque. Em vez disso, o que ele condena? Roubo. Ele não proíbe mentir, mas apenas prestar um falso testemunho. Assim, para aqueles que nada sabem do poder da lei, parece que eles cumpriram seu dever quando se abstiveram desses crimes específicos. Por essa razão, Paulo diz que, por um tempo, ele pensou que era o mais justo, como se Deus não pudesse ter descoberto nada nele pelo qual fosse achado reprovado (Rm 7:7). Assim, os hipócritas se embriagam de orgulho e ficam completamente loucos se Deus os repreende, pois acham que ele os prejudica equivocadamente. Por quê? Porque eles não entendem a natureza da lei. Ela é espiritual, diz Paulo, o que significa que devemos ser totalmente transformados antes que possamos nos submeter a ela (Rm 7:14). Enquanto seguirmos nossa natureza carnal, tudo o que pensamos, tudo o que fazemos e dizemos, só pode ser pecado aos olhos de Deus.

Portanto, não devemos olhar simplesmente para o termo empregado pela lei. Pois, quando Deus nos dá o exemplo do adultério, ele também buscava fazer com que qualquer fornicação nos parecesse detestável, pois se os votos do casamento são quebrados e violados, é uma perversão de toda lei e ordem entre os homens. Por esta palavra 'adultério', portanto, Deus está mostrando que detesta toda impureza sexual e falta de recato. Diz-nos também: 'Não matarás'. Não é, portanto, lícito brigar? De modo nenhum; nem mesmo odiar, de acordo com João, que nos diz que se alguém odeia secretamente o próximo, mesmo que nunca o atormente, nem levante um dedo contra ele, é um assassino aos olhos de Deus (1 João 3:15). Assim, pela palavra 'assassinato', Deus está condenando qualquer dano que possamos causar aos nossos vizinhos. Portanto, mesmo que não possamos levantar um dedo para machucá-los, se os odiarmos ou tivermos má vontade para com eles, somos culpados de assassinato aos olhos de Deus. O mesmo se aplica ao roubo; ladrões não são apenas pessoas que açoitamos e penduramos, e cujas orelhas cortamos. Estes, digo-vos, não são os únicos ladrões aos olhos de Deus. Mesmo aqueles que buscam criar uma reputação como boas pessoas e são altamente respeitados – se eles enganam e traem seus vizinhos, embora não possam ser acusados de roubo por causa de sua alta posição aos olhos dos homens, são, no entanto, ladrões diante de Deus. O mesmo se aplica a todos os outros pecados.

Nesta passagem, onde Paulo diz que as obras da carne são manifestas, sua linha de instrução se move dos pecados mais graves para os menores. Uma vez convencidos de nossa pobreza e pecado, e uma vez que descobrimos nossa própria condição vergonhosa, para que fiquemos sem palavras, devemos então ser convencidos de outro ponto: é preciso perceber que todos os apetites que nos levam a praticar o mal, seja roubo e crueldade, engano e perjúrio, ou ódio e inimizade – todas essas coisas devem ser igualmente condenadas. Pois a árvore ainda é má, mesmo que não vejamos seus frutos à primeira vista; a árvore tem sua própria natureza, mas a única maneira de julgar a natureza da árvore é por seus frutos. Agora, isso é digno de nota, porque, como eu disse, embora Deus obrigue os homens a se condenarem, apenas metade deles o fará. Eles desejam que tudo o que não é aparente para os outros seja esquecido, para que nenhuma menção seja feita. A pessoa condenada por ter feito o mal sem dúvida nunca perdoará seu próprio pecado se for forçada a confessá-lo. No entanto, não faz questão de se examinar voluntariamente para sentir o julgamento de Deus contra ela. Ela não pensa no que merece, nem considera as muitas tentações pelas quais passou antes de cometer esse ato, e as centenas de vezes que ofendeu a Deus antes que seu pecado se tornasse aparente para todos.

Devemos, portanto, prestar mais atenção a esse aviso sobre o qual comentei; especialmente porque os doutores Papistas demonstram excessiva estupidez dizendo que não é pecado pensar o mal ou ser tentado a praticá-lo, desde que não consinta em fazê-lo. Um homem pode ser tentado a enganar o próximo de alguma maneira; ele pode ter uma queixa ou frustração que o faz querer se vingar da pessoa que o ofendeu. Se a ocasião surgisse, ele ficaria encantado. Isso não é pecado, dizem eles, a menos que ele tenha consentido com a tentação com determinação. Eles estão apenas limpando a boca como prostitutas, ou mostrando o focinho como porcos, depois de se afundarem na lama e na sujeira. Um homem pode murmurar contra Deus e ficar zangado com ele, e duvidar que o Senhor cuidará dele; ele pode ser perturbado por muitos pensamentos desconfiados, para que ele não possa encontrar refúgio em Deus; mas nenhuma dessas coisas é pecado, de acordo com os papistas. Não estou dizendo que o rebanho comum seja o único a ser enganado nessas questões, pois todas as suas escolas mantêm a doutrina e a crença de que isso não é pecado. Eles dizem que tudo é pecado antes do batismo; mas depois do batismo, tudo se torna virtuoso, por mais que duvidemos de Deus, ou por mais queixas que tenhamos contra ele. Podemos estar muito impacientes com ele, ou agitados sobre esse assunto ou aquilo – mas não podemos ser acusados se não tivermos sido levados a praticar o mal externamente! Em resumo, se estamos inclinados a tudo o que Deus condena e reprova em sua lei – tudo o que é ilegal – isso não é nada. É compreensível que eles creiam em coisas tão estúpidas! Afinal, eles fizeram ídolos e estátuas grotescas para adorar, e agora suas mentes se obscurecem à medida que se divertem em torno de seus deuses, zombando de nós, como de uma criança enquanto esta fala de retidão e integridade. Portanto, não devemos nos surpreender se essas pessoas se comportarem assim. Porque eles falsificaram a glória de Deus e a destruíram, eles devem ser completamente brutos.  

Quanto a nós, notemos as palavras que já citei do apóstolo Paulo, a saber, que a lei é espiritual. Se somos condenados como rebeldes contra Deus por causa de atos externos visíveis, lembre-se de que Deus encontrará um número infinito, de fato, um abismo de maus desejos, se contorcendo dentro de nós, embora eles não sejam considerados pelos homens como algo que os torna culpados. Devemos, portanto, concluir que, em tudo e de todas as formas, somos afogados na perdição, até que Deus tenha piedade de nós e nos atraia. A maneira de aplicar este texto de Paulo às nossas instruções é a seguinte: na medida em que desconhecemos os pecados que nos espreitam, é necessário que Deus venha e examine nossas vidas. Depois disso, aprenderemos a nos humilhar. Então, quando vemos os pecados que são conhecidos e evidentes para todos, e que não podem ser desculpados, mesmo aos olhos das crianças, podemos ser levados ainda mais longe a sondar as profundezas e reconhecer que todos os nossos apetites e pensamentos são como muitas rebeliões contra Deus. No entanto, se cada um de nós tivesse mais cuidado em se examinar dessa maneira, todos certamente teríamos ocasião de tremer e suspirar; toda arrogância e orgulho seriam descartados e teríamos vergonha de todos os aspectos de nossas vidas. Mas sabemos que cada um de nós se afasta o máximo possível de qualquer conhecimento de nossos pecados; jogamos todos eles para longe de nossa presença. Deus não os esquece; embora possamos querer que eles sejam esquecidos, ele precisa mantê-los em memória. É para isso que Paulo atrai nossa atenção nesta passagem.

Além disso, podemos ver a tolice e a ignorância (ou melhor, a estupidez) dos Doutores do Papado, na medida em que acreditam que a palavra "carne" se refere apenas à natureza sensual do homem (como a chamam); pois é assim que eles dividem. Eles admitem que os apetites que eles chamam de "inferiores" são muito corruptos, mas acreditam que, enquanto tivermos livre-arbítrio, restará algum grau de razão e inteligência dentro de nós. Segundo os papistas, a sensualidade do homem se manifesta quando não é guiado por sua própria razão, mas se dedica excessivamente à impureza sexual, embriaguez, gula ou algo assim. No entanto, aqui, Paulo coloca a ambição no mesmo plano. Por que mais os homens invejam uns aos outros e competem pela superioridade um do outro, desejando ser os mais sábios ou mais inteligentes? Não é porque cada um deseja ser estimado aos olhos do mundo? Isso é menos digno de condenação do que fornicação ou embriaguez? Se um pobre coitado que adora comer e beber fica muito bêbado, bem, ele continuará seu caminho alegre; ele não pede para ser rei ou um grande senhor – ele simplesmente desperdiça seu tempo. Outro viciado em jogos de azar vai jogar com malandros como ele, sem ser tentado pela ambição e pelo desejo de possuir grande honra. Portanto, aqueles que são considerados os mais honrosos e que pensam bem de si mesmos são os mais carnais, diz Paulo. Vimos na Primeira Epístola aos Coríntios que ele os acusava de serem carnais, porque eles debatiam uns com os outros sobre assuntos doutrinários, e tinham um desejo tolo de serem valorizados e notados pelos homens (1 Cor. 3: 3). De fato, ele menciona 'conflitos e divisões' lá também. Se um homem perturba a igreja de Deus com falsas doutrinas, por desdém pelos outros ou por um desejo de aclamação e reputação, os papistas não diriam que ele era carnal. Eles diriam que ele era esperto demais; mas Paulo diz que heresias, ambição e emulações são obras da carne.

Isso prova o que dissemos nesta manhã, que a palavra "carne" inclui tudo o que diz respeito ao homem. Seremos completamente entregues ao mal, a menos que sejamos transformados.

Como eu já disse, é verdade que pagãos e incrédulos sempre serão considerados virtuosos, embora Deus tenha soltado suas rédeas e não os tenha regenerado por seu Espírito Santo. De fato, encontraremos algum grau de decência presente em suas vidas; no mínimo, nem todos serão fornicadores, ou bêbados ou ladrões. Portanto, como Paulo pode dizer que eles são carnais? Porque o coração do homem é um poço profundo de iniquidade, como Jeremias diz, sem suporte ou margem; o profeta exclama: “Enganoso é o coração, mais do que todas as coisas, e desesperadamente corrupto; quem o conhecerá?” Só Deus (Jr 17:9).

Os homens se vangloriam, como sabemos, e cometem atos perversos com impunidade; eles são tão endurecidos pelo pecado que acumulam mal sobre mal e erro sobre erro, considerando que seus vícios são virtudes. Ainda assim, suas vidas podem ter uma aparência atraente e brilhante. Dessa forma, não podemos dizer que aqueles que não foram ensinados na verdade serão justificados. Paulo disse no primeiro capítulo aos romanos que o mundo inteiro é culpado de impiedade e ingratidão, já que Deus se revelou a todos sem exceção, o suficiente para deixá-los sem desculpa (Rm 1:20). Ele acrescenta: “porquanto, tendo conhecimento de Deus, não o glorificaram como Deus, nem lhe deram graças; antes, se tornaram insensatos em seus próprios raciocínios, e o coração insensato se obscureceu. ” (Rm 1:21); portanto, ele os abandonou como réprobos, e os deixou seguir após as suas próprias luxúrias e iniquidades. Paulo continua recitando todas as coisas detestáveis que eles fazem. Entre outras coisas, ele fala de assassinato, fornicação e outras coisas más e corruptas que não devemos mencionar. Depois disso, ele fala de inveja, como nesta passagem, e daqueles que inventam coisas más; de engano, calúnia, malignidade, contendas e pelejas. É claro que nem tudo isso está em evidência em todo incrédulo! No entanto, Paulo nos diz que todos os incrédulos, dos maiores aos menores, são ingratos a Deus e lhe roubaram a honra que lhe é devida. Por isso, eles são culpados de sacrilégio, porque retiraram tudo o que lhe pertence.

Assim, ele lhes dá o salário que eles mereciam, devido ao fato de que as sementes de todo pecado residem na natureza do homem.

Contudo, embora os homens estejam cheios de tantos vícios quanto podemos imaginar, Deus ainda mantém as rédeas firmes e não permite que os homens se lancem completamente na iniquidade. Por causa disso, muitos incrédulos não são controlados por seus sentidos naturais; de fato, muitos são castos e modestos; eles não roubam os bens dos outros, mas são sóbrios e retos. Em resumo, possuem muitas virtudes de acordo com a opinião do mundo. Por que, então, eles são condenados junto com os fornicadores, ladrões e bêbados? É porque eles não têm essas virtudes por causa do desejo de obedecer a Deus, uma vez que não há integridade em seus corações. Eles são retidos pela vergonha ou por algum outro motivo desconhecido para nós. Dessa maneira, Deus poupa a raça humana, para que as coisas não fiquem em estado de confusão e os homens não sejam totalmente brutais. Deus está no controle desses incrédulos na medida em que todas as suas virtudes, sejam elas quais forem, permanecem vícios. Portanto, na primeira oportunidade, quando Deus libera suas rédeas, eles se envolvem em todos os tipos de males. Podemos dizer que os crentes podem ser facilmente ridicularizados. De fato, porém Deus prometeu conceder força a eles para perseverar. Além disso, há uma grande diferença entre os filhos de Deus, que são guiados por Seu Espírito Santo, e os incrédulos, que ainda são carnais. Os filhos de Deus anseiam e pretendem dedicar-se a ele e ser verdadeiramente purificados por sua graça. Os outros andam sem rumo e, se são bons, mal sabem o porquê! Eles chamarão isso de 'virtude', mas não têm Deus em mente porque estão longe d’Ele. É disso que precisamos lembrar desta passagem.

Por outro lado, Paulo diz que “o fruto do Espírito é: amor, alegria, paz, longanimidade, benignidade, bondade, fidelidade” (Gl 5:22) e coisas semelhantes. É como se ele estivesse dizendo que, em função de nossa grande perversidade e do fato de estarmos cheios de maldade e corrupção, há aqui o suficiente para nos exercitar de maneira a garantir que não ficaremos ociosos pelo resto de nossas vidas! A batalha contra o nosso pecado é suficiente para nos ocupar dia e noite. No entanto, também somos ordenados a ser gentis e de boa índole, a viver uma vida sóbria e casta e a evitar que sejamos poluídos. Devemos nos entregar como um sacrifício a Deus e abster-nos de tudo o que causaria algum dano. Em vez de buscar o desenvolvimento próprio, devemos fazer tudo o que pudermos para ajudar e confortar aqueles que precisam de nós. Quando vemos que todas essas coisas são esperadas de nós, perguntamos, é possível conseguir isso? De modo nenhum; de fato, precisamos ser transportados para o céu, a fim de nos aproximarmos de Deus. A santidade que Deus exige na lei e todas as boas obras que ele requer de nós têm sua justificativa porque ele está buscando uma união entre nós e ele. Mas onde estão as asas para voar tão alto? Pois não podemos ser castos, nem benignos, nem gentis, nem temperantes, nem sóbrios, a menos que renunciemos ao mundo e a nós mesmos e descartemos tudo o que somos por natureza. No entanto, isso está além de nossas faculdades. Portanto, há muita coisa aqui que poderia nos assustar.

Portanto, Paulo conclui dizendo que "contra tais não há lei". Em outras palavras, se somos verdadeiramente guiados pelo Espírito de Deus, não estamos mais debaixo da lei. Aqui, Paulo encoraja todos os crentes que sentem sua própria fraqueza até o momento em que deixarão seus corpos mortais para trás. Deus ainda os apoia, e o serviço deles é aceitável para ele, mesmo que eles não sejam completamente regenerados ao ponto de alcançarem a perfeição. Portanto, eles devem perseverar; caso contrário, serão perturbados e cairão em desespero. Paulo, portanto, nos exorta a sermos constantes aqui, nos dizendo que, se formos guiados pelo Espírito de Deus, não estaremos mais sujeitos à lei.

No entanto, ao mesmo tempo, ele está zombando indiretamente daqueles com quem tem uma desavença, como vimos nesta manhã, pois eles anunciavam suas virtudes com grandes fanfarras! É assim no Papado hoje, onde falar de santidade e do serviço a Deus se resume a boas ações e guardar muitas cerimônias. Em outras palavras, eles se preocupam com bobagens triviais. Um Papista se envolverá nisso e naquilo – ele se curvará a uma estátua e depois seguirá em direção à próxima. Os fanáticos acendem suas velas, aplicam a água benta várias vezes, fazem o sinal da cruz repetidamente aqui, ali e em qualquer lugar, e certificam-se de guardar dias de festa. Eles se sobrecarregam com todas essas coisas para se redimirem através de missas ou outras abominações. É assim que Deus é servido por eles e honrado! Para os Papistas, a perfeição consiste naquilo que nada mais é do que uma mentira; as velas devem ser atraentes, os órgãos devem soar de forma adequada, convém que haja muitos desfiles, as estátuas devem ser bem douradas, precisam preparar suas fragrâncias e satisfazer todos os demais tipos de loucuras. Isso é tolice, de fato, abominação, embora possam considerá-lo altamente virtuoso.

Quanto a nós, dizemos que o serviço de Deus é espiritual, e que ele não considera o que é visto pelos homens (João 4: 23-24). Deus busca reta integridade e sinceridade de coração, como diz o quinto capítulo de Jeremias (versículo três). No entanto, pelo contrário, os homens se convencem de que podem satisfazer a Deus à sua maneira e como quiserem, e assim transfiguram o Senhor e imaginam que ele é absolutamente igual a eles e, portanto, concorda com suas ideias. Isso não deve nos surpreender, pois, embora eles digam que foram instruídos debaixo da lei, nunca a estudam e realmente não sabem o que ela contém. Aprendemos, portanto, que, se queremos nos dedicar a servir a Deus, não devemos fazer o que nos parecer correto, pois nossas próprias ideias, como as chamamos, são simplesmente os enganos de Satanás. Devemos dar atenção ao que Deus ordenou e nos ocuparmos com as coisas que Ele determinou. Façamos disso nosso estudo, para que possamos prestar-lhe obediência.

Devemos tomar nota da passagem que nos é apresentada aqui, porque, por mais que nos esforcemos para observar nossas próprias invenções, isso não significa que Deus as aceitará. Estamos seguindo nossa natureza, que é corrupta. O que Deus quer, então, que façamos? O que ele pede de nós? Em primeiro lugar, renunciamos a toda perversidade, ódio, rancor; todas as dissensões, enganos, tudo o que causa danos, blasfêmias, idolatria, crueldade, violência, traição, inveja e inimizade. Assim, devemos ser bons soldados se quisermos nos dedicar a servir a Deus, lutando contra as obras da carne, e não somente contra as obras visíveis e que o mundo condena ou aprova.

Nossa luta é contra as concupiscências ocultas. Que possamos ser limpos dessa sujeira, que está estagnada em nossos corações. Que possamos aplicar todos os nossos esforços para esse fim; não que tenhamos a capacidade de conseguir isso sozinhos, mas devemos estar prontos para orar a Deus e nos examinar de manhã e de noite. Uma vez que reconhecemos nossos pecados, podemos ser movidos a tremer e pedir ajuda à fonte correta. Devemos pedir que Deus cure o mal com o qual somos atingidos. Se, portanto, nos esforçamos cada vez mais para viver uma vida feliz, sermos bem-humorados, sermos pacientes na adversidade, ao sofrermos insultos e ferimentos sem buscar vingança – se, digo, formos assim, teremos muito com o que nos ocupar e nunca poderemos ficar ociosos.

Deixemos os Papistas continuarem brincando com Deus. Por que eles se preocupam tanto? Porque eles nunca souberam como Deus deseja ser servido e honrado. De acordo com eles, os mandamentos do Senhor não são nada comparados às suas invenções tolas. Deixe-me lhe dar um exemplo. Um homem trabalha honestamente para ganhar a vida; embora ele só tenha o pão para se satisfazer, ele ainda chama a Deus de manhã e o louva à noite. Se ele tem filhos, nega a si mesmo o máximo possível para alimentá-los e vesti-los. Se Deus envia aflições para sua casa, ele as suporta pacientemente. Se ele pratica algum tipo de artesanato, ou algum outro comércio, ele evita trair seu próximo. Ele preferiria morrer a lesar alguém. Esse homem, que vive acima de tudo uma vida honesta, não será arrogante o suficiente para buscar a autopromoção sem restrições. Ele não será entregue a hábitos intemperantes. Ele será modesto em comer e beber, paciente em todas as adversidades. Que tipo de homem é esse, de acordo com os Papistas? “Oh, ele é um homem secular; em outras palavras, ele é um homem do mundo”. É assim que eles valorizam o puro serviço de Deus. Sabemos que o principal serviço que Deus requer de nós é que nos dediquemos inteiramente a ele; isso significa que o glorificaremos na aflição e na prosperidade e seguiremos a vocação que temos quando formos chamados, sem orgulho, ambição ou inveja. Deus se deleita com isso, mas de acordo com a definição dos Papistas, aqueles que vivem dessa maneira são mundanos!

Onde estão os “anjos” para os papistas, então? Dentro de mosteiros! Quando esses hipócritas perversos se enchem de prazeres e se entopem de boa comida, eles não sabem o que fazer depois, com exceção de apostar em jogos ou perseguir outros males. (Pois sabemos que todos os conventos do Papado são perfeitos bordéis, e quisera Deus que eles fossem apenas bordéis – pois cometem atos tão grosseiros e chocantes lá dentro que nossos cabelos se arrepiam só de ouvir sobre eles!) Em outras palavras, seu estilo de vida nos deixaria horrorizados, e ainda assim esses são os anjos se comparados às pessoas pobres que vivem como descrevemos anteriormente. Por que isso? Por cantarem preces pela manhã devotamente, a missa e se separarem do resto do mundo. Eles não tentam escavar terra, nem se envolvem em costura ou alfaiataria, ou qualquer outra coisa. A vida deles é contemplativa e eles estão em estado de perfeição. Você não vê como o mundo foi enganado? Essas pessoas, que transformam Deus em pequenas estátuas, bem merecem a cova por conceber tais erros absurdos.

Quanto a nós mesmos, tenhamos consciência de que nosso Deus é Espírito e que ele deseja ser servido espiritualmente, como nos diz em sua Palavra. Ao mesmo tempo, tenhamos cuidado de ficar preso a noções tolas que enfeitiçam esses infelizes; em vez disso, percebamos que Deus fala conosco para que possamos recorrer a Ele em toda a santidade, integridade e retidão. Vamos medir nossas vidas em relação à lei e não em relação às nossas próprias opiniões ou às do mundo. Vamos nos preocupar com o que Deus ordena e proíbe, pois temos que prestar contas a Ele, e sabendo que não temos outro juiz que não o próprio Deus. Que possamos nos exercitar em todas essas coisas, acreditando que, se o fizermos, não estaremos trabalhando em vão. Deixe os Papistas quebrarem as pernas e o pescoço, o tempo todo sem saber o que estão fazendo, ainda irritando a Deus e provocando-o cada vez mais. Para não nos esforçarmos em vão, ou vagarmos aqui e ali seguindo essa ou aquela opinião sem um destino fixo, vamos nos exercitar nas coisas que Paulo nos ensina nesta passagem. Consequentemente, não seremos condenados por nos ocuparmos com coisas sem sentido que Deus desaprova, detesta e declara como frívolas.

Agora, caiamos diante da majestade de nosso grande Deus, reconhecendo nossos pecados e orando para que ele nos torne cada vez mais conscientes deles, para que nos humilhemos. Tendo condenado a nós mesmos, vamos recorrer a ele, sabendo que está sempre disposto a ajudar aqueles que estão famintos de sua graça e que a desejam sinceramente. Visto que nos deu o Senhor Jesus Cristo, e vê sua conduta como se fosse nossa, que ele possa derramar os tesouros e os dons de seu Espírito Santo, para que possamos participar deles. Que Ele aumente sua graça em nós, e que estejamos tão bem armados que alcancemos a vitória em todos os nossos combates contra Satanás, o mundo e nossa própria carne. Que Ele mostre essa graça não apenas para nós, mas para todos os povos e nações da terra, Amém.

 

João Calvino
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