A Necessidade de Reformar a Igreja

Afirmamos, então, que, no início, quando Deus levantou Lutero e outros, que seguraram uma tocha para nos iluminar no caminho da salvação e que, por seu ministério, fundaram e ergueram nossas igrejas, aqueles tópicos doutrinários nos quais a verdade da nossa religião, aqueles nos quais a pura e legítima filiação a Deus e aqueles nos quais a salvação dos homens é compreendida eram, em grande medida, obsoletos. Afirmamos que o uso dos sacramentos era, de muitas maneiras, viciado e contaminado. E afirmamos que o governo da Igreja foi convertido em uma espécie de tirania imunda e insuportável. Mas, talvez, essas alegações não tenham força suficiente para mover certos indivíduos até que sejam mais bem explicadas. Isso, portanto, farei, não como o assunto requer, mas até onde minha habilidade permitir. Aqui, contudo, não tenho a intenção de revisar e discutir todas as nossas controvérsias. Isso requereria um longo discurso, e este não é o lugar para isso. Desejo apenas mostrar o quão justas e necessárias foram as causas que nos forçaram a fazer as mudanças das quais somos acusados. Para fazer isso, seguirei os três pontos a seguir. Primeiro, enumerarei, brevemente, os males que nos forçaram a buscar remédios. Segundo, mostrarei que os remédios específicos que nossos reformadores usaram eram adequados e salutares. Terceiro, deixarei claro que não temos mais liberdade para colocar mãos à obra, visto que o assunto requer correção imediata. O primeiro ponto, como meramente me refiro a ele para limpar meu caminho para os outros dois, apresentarei em poucas palavras, mas, para remover a pesada acusação de audácia sacrílega e sedição, baseada na alegação de que, impropriamente e com ímpeto imoderado, usurpamos um ofício que não nos pertence, farei uma exposição detalhada.

Se for perguntado, então, quais as coisas principais pelas quais a religião cristã tem uma existência permanente entre nós e mantém sua verdade, descobrir-se-á que as duas coisas seguintes não apenas ocupam o lugar principal, mas abrangem todas as outras partes, e, consequentemente, toda a substância do cristianismo, a saber, um conhecimento, primeiro, do modo como Deus é devidamente adorado; e, segundo, da fonte da qual a salvação deve ser obtida. Quando essas coisas são mantidas fora de vista, mesmo que possamos nos gloriar no nome de cristãos, nossa profissão é vazia e vã. Depois dessas coisas vêm os Sacramentos e o governo da Igreja, que, como foram instituídos para a preservação desses ramos de doutrina, não devem ser empregados para qualquer outro propósito. De fato, o único meio para determinar se são administrados puramente e na devida forma ou não é submetê-los a esse teste. Se alguém desejar uma ilustração mais clara e mais familiar, eu diria que o governo na Igreja, o ofício pastoral e todas as outras questões de ordem se assemelham ao corpo, enquanto a doutrina que regula a devida adoração a Deus e aponta para o fundamento sobre o qual a consciência dos homens deve colocar sua esperança de salvação é a alma que anima o corpo, torna-o vivo e ativo e, em resumo, faz com que ele não seja uma carcaça morta e inútil. Quanto ao que eu disse, não há controvérsia entre os piedosos, ou entre homens de mente correta e sã.

O uso dos sacramentos havia sido manchado e corrompido, e o governo da igreja transformado em uma forma de tirania cruel e insuportável.

Vejamos, agora, o que quero dizer com pura adoração a Deus. Seu principal fundamento é reconhecê-lo como de fato é, a saber, a única fonte de toda virtude, justiça, santidade, sabedoria, verdade, poder, bondade, misericórdia, vida e salvação; de acordo com isso, atribuir e render a ele a glória de tudo o que é bom, buscar todas as coisas somente dele e, em toda carência, recorrer somente a ele. Daqui nasce a oração, daqui nasce o louvor, daqui nasce a ação de graças – sendo tudo isso comprovação da glória que atribuímos a ele. Essa é a genuína santificação do seu nome, que ele requer de nós acima de todas as coisas. A isso está unida a adoração, pela qual manifestamos por ele a reverência devida à sua grandeza e excelência, e a essas cerimônias somos subservientes, como auxílios ou instrumentos, para que, na execução da adoração divina, o corpo seja exercitado ao mesmo tempo que a alma. Logo depois disso vem a auto-humilhação, quando, renunciando ao mundo e à carne, somos transformados pela renovação da nossa mente e, vivendo não mais para nós mesmos, nos submetemos a sermos governados e movidos por ele. Por meio dessa auto-humilhação, somos treinados à obediência e à devoção à sua vontade, de modo que o temor a ele reina em nosso coração e regula todas as ações da nossa vida. Que nessas coisas consiste a verdadeira e sincera adoração que somente Deus aprova e na qual somente ele tem prazer é ensinado pelo Espírito Santo ao longo da Escritura e é também, antecedente à discussão, a ordem óbvia da piedade. Desde o princípio também não houve qualquer outro método de adoração a Deus, a única diferença sendo que essa verdade espiritual, que conosco é nua e simples, estava, sob a antiga dispensação, envolta em figuras. E este é o significado das palavras do nosso Salvador:

Mas vem a hora, e já chegou, em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e em verdade (Jo 4.23).

Com essas palavras, ele não quis declarar que Deus não era adorado pelos pais desse modo espiritual, mas apenas apontar para uma distinção na forma externa, a saber, que, enquanto os pais tinham o espírito obscurecido por muitas figuras, nós o temos em simplicidade. Contudo, sempre tem sido reconhecido que Deus, que é Espírito, deve ser adorado em espírito e em verdade.

Além disso, a norma que distingue entre adoração pura e adoração viciada é de aplicação universal, para que não adotemos qualquer mecanismo que nos pareça adequado, mas observemos a determinação daquele que é o único que tem o direito de prescrevê-la. Portanto, se quisermos que ele aprove nossa adoração, essa norma, que ele, em toda parte, impõe com o máximo rigor, deve ser cuidadosamente observada. Pois há uma dupla razão para que o Senhor, ao condenar e proibir toda adoração fictícia, exija que prestemos obediência somente à sua voz. A primeira é que isso tende a estabelecer sua autoridade, para que não sigamos nossos próprios prazeres, mas que dependamos inteiramente de sua soberania; e, a segunda, que tão grande é nossa insensatez que, quando somos deixados livres, todos somos capazes de nos desviar. E, então, tendo nos afastado do caminho certo, não há fim para as nossas perambulações, até que sejamos sepultados sob uma multidão de superstições. Com razão, portanto, o Senhor, para afirmar seu pleno direito de domínio, ordena estritamente o que deseja que façamos e, de uma só vez, rejeita todos os mecanismos humanos que divergem de sua ordem. Com razão, também, ele, em termos expressos, define nossos limites para que não criemos modos perversos de adoração e, assim, provoquemos sua ira contra nós. Sei o quanto é difícil convencer o mundo de que Deus desaprova todos os modos de adoração não expressamente sancionados por sua palavra. O convencimento oposto que adere a eles, sendo estabelecido, por assim dizer, em seus próprios ossos e medula, é que tudo o que fazem tem em si mesmo uma sanção suficiente, desde que demonstre algum tipo de zelo pela honra de Deus. Mas, o que ganhamos seguindo o caminho contrário, já que Deus não apenas considera inútil como também, claramente, abomina tudo o que fazemos, mesmo movidos por zelo, para sua adoração, se não estiver em conformidade com seu mandamento? As palavras de Deus são claras e distintas: Eis que o obedecer é melhor que o sacrificar, e o atender, melhor do que a gordura de carneiros (1Sm 15.22; Mt 15.9). Toda adição a essa palavra, especialmente sobre este assunto, é uma mentira. Mera “adoração da vontade” (εὐθελοθρησκεία),[1] é uma vaidade. Essa é a decisão, e, uma vez que o juiz decidiu, não há mais tempo para debater.

É muito difícil persuadir o mundo disto: Deus desaprova toda adoração que tenha sido estabelecida além de sua Palavra.

Agora peço que Vossa Majestade Imperial perceba, e que os Ilustríssimos Príncipes me deem sua atenção, enquanto mostro o quanto estão em desarmonia com essa postura todas as observâncias nas quais, em todo o mundo cristão, no presente, a adoração divina passou a consistir. Em palavras, de fato, concedem a Deus a glória de tudo o que é bom, mas, na realidade, roubam-lhe a metade, ou mais da metade, ao dividirem suas perfeições entre os santos. Que nossos adversários usem os subterfúgios que puderem e nos difamem por exagerar o que fingem ser erros triviais, simplesmente afirmarei o fato como todo homem o percebe. Os ofícios divinos são distribuídos entre os santos como se tivessem sido nomeados colaboradores do Deus supremo, e, em uma multidão de casos, eles fazem o trabalho dele, enquanto ele fica fora de vista. Aquilo de que reclamo é exatamente aquilo que todos confessam por meio de um provérbio vulgar. Pois o que se quer dizer com a declaração de que “o Senhor não pode ser conhecido pelos apóstolos”, a menos que, pela altura à qual os apóstolos foram elevados, a dignidade de Cristo seja afundada, ou pelo menos obscurecida? A consequência dessa perversidade é que a humanidade, abandonando a fonte de águas vivas, aprendeu, como Jeremias nos ensina, a cavar:

Cisternas, cisternas rotas, que não retêm as águas (Jr 2.13).

De onde é que buscam a salvação e todo outro bem? É somente de Deus? Todo teor de sua vida proclama abertamente o contrário. Dizem, de fato, que buscam nele a salvação e todo outro bem, mas isso é mero fingimento, pois se vê que buscam em outros lugares.

Desse fato, temos provas claras nas corrupções pelas quais a oração foi inicialmente viciada e, depois, em grande medida pervertida e extinta. Observamos que a oração proporciona um teste de se os suplicantes rendem a devida glória a Deus ou não. Do mesmo modo, ela nos permite descobrir se, depois de privá-lo de sua glória, eles a transferem às criaturas. Na oração genuína, algo mais é exigido do que mera súplica. O suplicante deve sentir-se seguro de que Deus é o único ser a quem ele deve recorrer, porque somente ele pode socorrê-lo em sua necessidade e porque ele se comprometeu a isso. Mas ninguém pode ter essa convicção a menos que atente para o mandamento pelo qual Deus nos chama a si e à promessa de ouvir nossas orações, que está anexa a esse mandamento. O mandamento não é assim considerado quando a generalidade da humanidade invoca anjos e homens mortos promiscuamente com Deus, e a parte mais sábia, se não os invoca em lugar de Deus, pelo menos os considera como mediadores, mediante cuja intercessão Deus atende aos seus pedidos. Onde, então, está a promessa que é baseada totalmente na intercessão de Cristo? Deixando de lado a Cristo, o único mediador, cada um se dirige ao patrono que corresponde à sua fantasia, ou, em algum momento, se algum lugar é dado a Cristo, é apenas um lugar no qual ele permanece ignorado, como um indivíduo comum em uma multidão. Então, embora nada seja mais repugnante à natureza da genuína oração do que dúvida e desconfiança, essas coisas predominam em tão grande medida que quase são consideradas necessárias para se orar corretamente. E por que é assim: exatamente porque o mundo não entende a força das expressões nas quais Deus nos convida a orar a ele, compromete-se a fazer o que pedirmos na dependência de seu mandamento e de suas promessas e apresenta Cristo como o advogado em cujo nome nossas orações são ouvidas. Além disso, as orações públicas que estão em uso comum nas Igrejas devem ser examinadas. Verificar-se-á que estão manchadas com inúmeras impurezas. Com base nelas, portanto, podemos avaliar o quanto essa parte da adoração divina está viciada. Também não há menos corrupção nas expressões de gratidão. Desse fato dão testemunho os hinos, nos quais os santos são louvados por toda bênção, como se fossem colaboradores de Deus.

João Calvino

Trecho adaptado de A Necessidade de Reformar a Igreja, de João Calvino, © 2024.

[1] O termo grego εὐθελοθρησκεία (Colossenses 2:23), traduzido como ‘culto voluntário’ ou ‘autorreligião’, descreve uma forma de devoção que se origina na vontade humana em vez de ser um culto instituído por Deus. Na tradição reformada, isso é visto como uma tentativa de justificar-se ou agradar a Deus por meio de ritos e práticas humanas, sem base nas Escrituras. Calvino criticava fortemente esse tipo de adoração, afirmando que a verdadeira religião não pode ser inventada pelo homem, mas deve seguir as prescrições divinas reveladas na Palavra de Deus (cf. Institutas, 4.10.8-9). A εὐθελοθρησκεία, portanto, é um desvio do culto genuíno, pois coloca a vontade humana acima da vontade soberana de Deus, caracterizando o que Paulo descreve como ‘aparência de sabedoria’ que, contudo, ‘não tem valor algum’ no verdadeiro crescimento espiritual (Colossenses 2:23). Tal adoração voluntarista pode parecer piedosa, mas é fútil, porque está divorciada da obediência à ordem divina, um ponto central na teologia reformada que insiste na suficiência e na autoridade das Escrituras como reguladoras do culto e da vida cristã (cf. Confissão de Fé de Westminster, 21.1). [Nota do Editor]

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